Na agitada e cosmopolita São Paulo, a maior metrópole da America Latina, existe uma pequena e calma rua, que surge como coração e resumo do Espiritismo no Brasil – a rua Espírita.
Fundeada pelo pitoresco ‘Morro do Piolho’, ponto de encontro dos malandros até os anos de 1950, hoje recebe os edifícios de classe média, a rua Espírita fica na região central da cidade, fazendo esquina com o Caminho Histórico Glória-Lavapés, sempre caracterizada pela forte presença da população negra, que em 1872 chegava a compor um terço dos habitantes de São Paulo.
Da mesma forma que os quilombos urbanos abrigavam escravos libertos, ainda hoje, a Paróquia Nossa Senhora da Paz e o Centro Pastoral e de Mediação dos Migrantes (CPMM), recebem na Rua do Glicério, refugiados da dor e sofrimento vindos do Haiti e outros países em conflito.
Rua Espírita n. 28 Centro Espírita Verdade e Luz de Batuira - 1908 - morro do piolho ao fundo |
Essa região é caracterizada pela escassez de recursos materiais, fortemente compensada pela grande caridade, a ponto de se transformar no porto seguro para receber os irmãos em sofrimento. A generosidade e empenho no amor de alguns, parece se unirem à malandragem e pobreza material de outros, “a esperteza é a arma do pobre”, dizia a Santa ao defender João Grilo, no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna – entre eles, um ilustre morador da rua Espírita, o Sr Batuira, homem que uniu a religião dos escravos com a pseudo-ciência da burguesia - foi o Espírita Batuira que deu nome a rua.
Instituição Cristã Beneficente Verdade e Luz na Rua Espírita em 2021 - morro do piolho ao fundo |
Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho
Livro pscicografado pelo médium Chico Xavier, Humberto de Campos sob pseudónimo de ‘Irmão X’, Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho narra a história da formação do Brasil como nação destinada à luz de uma programação muito especial no plano espiritual superior.
O livro sugere que esgotadas todas as possibilidades das civilizações européias regenerarem a humanidade, Cristo designa seu assistente, o anjo Ismael para a missão de transplantar a árvore do Evangelho para o país do Cruzeiro, que será a futura "Pátria do Evangelho".
De fato, o Brasil tem abrigado as religiões espíritas, independentemente das classes sociais e religiões previamente adotadas. Vale observar que os cultos afro-brasileiros constituem um fenômeno relativamente recente na história religiosa do Brasil, acredita-se que o primeiro terreiro de Candomblé surgiu no nordeste, mais precisamente na Bahia, no ano de 1830, a Umbanda (a ‘arte de curar’ em idioma Quinbunda da Angola), uma religião com ligações ao Candomblé só foi anunciada no dia 15 de novembro de 1908, pelo médium Zélio Fernandino de Moraes ao receber o Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Estas novas religiões apareceram primeiro na periferia urbana brasileira, onde os escravos tinham maior liberdade de movimento e eram capazes de se organizar em nações, daí eles se espalharam por todo o país, e tomaram diversos nomes como Catimbó, Tambor de Minas, Xangó, Candomblé, Macumba e Batuques. O Candomblé, a mais tradicional e africana dessas religiões desde longa data tem sido sinônimo de tradições religiosas afro-brasileiras em geral.
Desde o começo os pais-de-santos buscavam re-africanizar a religião, isso foi possível em parte, porque a rota dos navios entre Nigéria e Bahia conservou viva a conexão com a África, e os escravos libertos que puderam viajar para áreas dos Yorubás foram iniciados no culto dos Orixás e então, ao retornar ao Brasil, puderam fundar terreiros a revitalizar a prática religiosa.
Instituição Cristã Beneficente Verdade e Luz, na rua Espírita n. 102 |
Ao mesmo tempo, a burguesia intelectual branca reverenciava a França, o maior expoente das mais novas correntes culturais e espirituais, entendiam que os negros brasileiros não cabiam na modernização republicana, inspirada pelas teorias raciais pseudo-científicas européias e norte americanas, a elite branca dominante via a população negra com muito preconceito e diferenciava o Kardecismo do Candomblé por puro preconceito.
Mesmo com a abolição da escravatura em 1888 e a ratificação da Constituição Republicana em 1889 e a separação da Igreja e do Estado em 1890 a república ainda proibia o espiritismo, esta proibição era dirigida especialmente contra as religiões afro-brasileiras, que eram denunciadas como baixo espiritismo.
Com o ‘nom de plume’ de Allan Kardec, o educador Hippolyte Léon Denizard Rivail era um tradutor e autor francês, nascido em Lyon em 3 de outubro de 1804. Criado como católico romano, tinha profundos interesses em filosofia e ciências, e se tornou um acólito e colega de Pestalozzi.
Seu trabalho como fundador da doutrina espírita começa com seu encantamento pelas apresentações de ‘les tables tournantes’ as mesas giratórias - uma prática que veio dos Estados Unidos com o nome de ‘Turntables’ na qual médiuns recebiam mensagens por meio de manifestações em pequenas mesas redondas.
Em maio de 1855, o magnetizador Fortier o levou para conhecer um desses eventos, más foi nos círculos espíritas parisienses, ao lado de Victorien Sardou que percebeu que tratava-se de um fenómeno sério.
Assim os espíritos revelam o mistério espírita a Kardec:
« L'homme n'est pas seulement composé de matière, il y a en lui un principe pensant relié au corps physique qu'il quitte, comme on quitte un vêtement usagé, lorsque son incarnation présente est achevée. Une fois désincarnés, les morts peuvent communiquer avec les vivants, soit directement, soit par l'intermédiaire de médiums de manière visible ou invisible (Le Livre des Esprits) » - (O homem não é apenas composto de matéria, há nele um princípio pensante vinculado ao corpo físico que ele deixa, como se deixa uma vestimenta usada, quando se completa a sua presente encarnação. Uma vez desencarnados, os mortos podem se comunicar com os vivos, seja diretamente ou por meio de médiuns de forma visível ou invisível - O Livro dos Espíritos)
Como o assunto era motivo de tabu e desprezo pelos científicos da época, adotou o pseudônimo que fora seu nome em uma outra existência anterior na pelo de um druida, Allan Kardec - e com seu nome verdadeiro ele poderia continuar a escrever suas obras pedagógicas.
Ao receber informações de médiuns diferentes, que não tinham conhecimento entre sí, Kardec organizava os textos, com todos os tipos de espíritos, esse material foi a base da doutrina espirita. Entusiasmado com o trabalho em mãos, no dia 1º de abril de 1858, Allan Kardec fundou em París a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.
A maior parte desse conhecimento foi relatada por escrito em ‘Le Livre des Spirits (1857)’ e no ‘Le Livre des Mediums (1861)’, junto a outros os cinco livros fundamentais, continuamente reeditados até os dias de hoje. Kardec também fundou ‘La Revue Spirite’, uma revista publicada em vários idiomas.
Aqui no Brasil as notícias sobre os fenômenos das tais "mesas girantes", publicadas no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, do Diário de Pernambuco, de Recife, e em O Cearense, de Fortaleza bem tinham grande impacto nos leitores, instituições destinadas a promover e estudar o Espiritismo começaram a aparecer, tais como o Grupo Familiar de Espiritismo, inaugurado em 17 de setembro de 1865, por Luís Olímpio Teles de Menezes, na cidade de Salvador.
Assim como Kardec, Menezes também era letrado, falava inglês, o francês, castelhano e latim, escrevia para o Diário da Bahia, Jornal da Bahia, A Época Literária e publicou o romance Os Dois Rivais e o jornal espírita ‘O Eco do Além Túmulo’ em julho de 1869.
Perseguições e Incompreensões
No ano de 1875 chegam no Brasil as primeiras traduções para o português das obras de Allan Kardec, feitas por Joaquim Carlos Travassos, com pseudônimo de Fortúnio, e editadas pelo Grupo Confúcio, o primeiro centro espírita do Rio de Janeiro, fundado em 2 de agosto de 1873. Ainda neste ano, o tradutor oferece ao médico, Dr. Bezerra de Menezes um exemplar de O Livro dos Espíritos.
Em 23 de março de 1876 é fundada, no Rio de Janeiro, a "Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade", da qual participavam Bittencourt Sampaio e Antônio Luís Sayão, que mais tarde passou a se chamar "Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade".
Havia divergências entre os espíritas do Rio de Janeiro, que de acordo com os pontos de vista defendidos se dividiam em místicos e pseudo-cientificistas, o que resultou na criação de várias instituições.
Tais disputas cresciam até que que no dia 28 de agosto de 1881 os jornais O Cruzeiro e o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro publicavam uma ordem policial proibindo o fundamento da "Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade e dos Centros filiados.
Em 6 de setembro de 1881, uma comissão de espíritas requisita proteção ao Imperador D. Pedro II, que promete fazer cessar as perseguições. Ainda em 6 de setembro de 1881 é realizado o Primeiro Congresso Espírita do Brasil, com o objetivo de reunir e orientar as instituições espíritas.
Em 28 de agosto de 1882 é realizada a Primeira Exposição Espírita do Brasil, na sede da Sociedade Acadêmica Espírita Deus, Cristo e Caridade. A data, aliás, recordava o início da perseguição policial ao Espiritismo.
Salve grande Batuíra
A doutrina demorou a chegar em São Paulo, más Antônio Gonçalves da Silva, o Batuira, o fez com grande diferencial.
Sem estudos formais, o imigrante português nascido em Águas Santas, freguesia de Maia, Portugal, a 19 de março de 183, o abolicionista Batuira buscou o Espiritismo após um triste e inusitado episódio:
No ano de 1883, seu filho de 12 anos, faleceu de tétano após perfurar o dedo no espinho de rosa. O velório foi realizado na casa da Rua Espírita, Batuíra após velar tristemente seu filho, muito emocionado, levantou-se e retirou-se para seu quarto, ao final de meia hora, ressurgiu na sala com a fisionomia modificada. A dor havia sido substituída por imensa paz e tranquilidade.
Batuira disse aos presentes que não queria mais lamentos e choros pelo filho, pois ele não estava morto, más sim, bem vivo ao lado de Jesus, ainda como arte dessa linda celebração, Batuíra saiu em busca de uma banda de música – não se tratava de música fúnebre como seria de se esperar, porém alegres valsas, polcas e marchas. Mais tarde, Batuíra contaria aos seus amigos mais íntimos que, trancado em seu quarto começou a ver um vulto se formando envolto por uma luz, era seu filhinho querido que lhe dizia: “Pai, não fique triste. Eu não morri. Estou mais vivo do que nunca”.
Batuíra era dono de elevados dotes da moral cristã. “Inúmeras vezes escondera escravos fugidos dos maus tratos dos seus senhores, e sempre que eles eram descobertos, envidava todos os esforços para compra-lhes a liberdade”.
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Imigrante português, Batuira chegou em São Paulo com 17 anos, empregou-se como distribuidor do Correio Paulistano, e como andava sempre rápido de um lado para o outro recebeu o apelido de Batuíra, nome de uma pequena ave muito arisca que se movimenta pelo chão com passos rápidos, Antônio Gonçalves até mesmo registrou o apelido como seu último sobrenome.
Junto a alguns amigos estudantes fundou um teatro com capacidade para 200 pessoas, no qual dirigia e atuava. Seu teatro funcionou de 1860 e 1880 no número 10 da antiga Rua da Cruz Preta, nos fundos de uma taverna, depois mudou-se para a Rua do Príncipe e atual Quintino Bocaiúva.
O chamado ‘Teatrinho da Cruz Preta’ reunia estudantes e intelectuais da época, atraídos pela informalidade, que geralmente o recebiam com os ingênuos versos:
“Salve grande Batuíra
Com seus dentes de traíra
Com seus olhos de safira
Com tua arte que me inspira
Nas cordas da minha lira
Estes versos de mentira”
Mais tarde resolveu dedicar-se à fabricação de charutos, conseguindo melhorar sua situação financeira e comprou uma área desvalorizada na região do Lavapés, onde começou a construir várias casas que alugava aos mais carentes.
Batuíra era dotado de um espírito idealista e humanitário, participou ativamente da campanha abolicionista de Luiz Gama e Antônio Bento, foi um dos pioneiros na divulgação da doutrina espírita no Brasil, em 1890 fundou o Grupo Espírita Verdade e Luz, ainda existente, e no mesmo ano comprou uma tipografia a que deu o nome de Tipographia Espírita e lançou o periódico Verdade e Luz, que chegou a alcançar uma tiragem de 15 mil exemplares, volume muito superior a dos jornais diários da época, distribuído por todo o Brasil, o periódico estampava colunas escritas por dezenas de espiritistas brasileiros, dentre eles Anália Franco e Casimiro Cunha.
Batuíra, ele mesmo um médium de cura, lia muitos livros de homeopatia com intuito de fazer de sua mediunidade de cura um instrumento de alívio para as dores dos necessitados. Muitos obsidiados, tidos como loucos incuráveis pela medicina da época, se recuperaram e passaram a levar vida normal com o tratamento do médium.
Foi sua preocupação com a cura verdadeira das almas que fez com que fundasse também outros grupos e centros espíritas em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, nos quais procurava estar presente. Propagava o espiritismo através de conferências pelas cidades brasileiras, visitando enfermos e distribuindo folhetos sobre a doutrina e livros.
Antes de morrer, doou todos seus bens à Instituição Cristã Beneficente Verdade e Luz, fundada por ele em 1904, e ainda ainda instituiu a União Espírita do Estado de São Paulo, órgão que passou a federar todos os grupos e centros Espíritas existentes no Estado.
Batuíra morreu (ou melhor, desencarnou) no dia 22 de janeiro de 1909 aos 69 anos, sendo enterrado no cemitério da Consolação. Em sua homenagem, em 2009, os frequentadores do Grupo Espírita Batuíra de Algés (Portugal) afixaram, uma placa com seu retrato na casa onde nasceu na Vila Meã.
A Unificação de Todos os Brasileiros pela Fé
Assim como nos dias de hoje, o Brasil sempre teve suas divisões de classe social, orientação política e até mesmo na fé espírita, conforme relatado por Woodrow Wilson da Matta e Silva em seu livro "Segredo de Magia de Umbanda e Quimbanda" (1964a, p. 62), comparando as doutrinas Kardecistas e Umbandistas.
Sempre controverso, Matta e Silva denuncia o preconceito fomentado pelo segmento espírita ao nível social dos espíritos que "baixam" na umbanda. "Por que vocês, kardecistas (há honrosas exceções, é claro) em seus centros, em suas sessões, têm pavor dos "espíritos de negros" (desencarnados é claro) – no caso, nossos preto-velhos e dos de índios, no caso, nossos chamados caboclos? Isso é preconceito ou "racismo espirítico?... Porque, já assistimos, e são fatos muito comentados no meio umbandista mais culto, aos casos em que, nas sessões de mesa Kardecista, por força de certas circunstâncias, aconteceu de "baixar" preto-velho e caboclo. Santo Deus!".
Em determinado momento do programa Pinga-fogo da antiga TV Tupi, na histórica entrevista televisionada, o médium espírita Chico Xavier esclarece que os espíritos de índios, caboclos e pretos-velhos, que aparecem na Umbanda, bem como dos orixás do Candomblé, tem completa relação, e são tratados com todo o carinho e respeito pelo Kardecismo. Cada uma dessas entidades trabalha em faixas vibratórias específicas, de forma a atuar com as diferentes populações do Brasil, em seus diferentes estágios evolucionários, com o nobre e único propósito da evolução individual de cada espírito.
A aceitação de todas as entidades, com o carinho e o respeito devidos, em todos seus diferentes estágios de evolução é o caminho para a paz no mundo dos homens – lembrem-se que a evolução acontece primeiro no mundo espiritual para depois se manifestar no mundo físico.
Por conta de seu convívio com todo tipo de gente, humildes e letrados, ricos e pobres, intelectuais livres e escravos sofredores, Batuira aprendeu muito sobre a alma humana brasileira, soube desde o início como dirimir diferenças bem como respeitar, amar e aceitar a todos, independentemente de seu estágio evolucionário, posição social e crenças, tal como pregado por Jesus.
A rua Espírita parece nos mostrar, como um pequeno simulacro do Brasil, através de sua energia intrínseca e história, como e porque o Brasil é realmente o local escolhido para trazer a evolução da fé Cristã para todos os brasileiros, e or fim, para todo o mundo.
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