domingo, 15 de dezembro de 2024

A Entrada de Rouen : Uma pista sobre como viviam os Tupis no Brasil

 
A festa brasileira em Rouen, foi um espetáculo realizado em 1550 com o proposito de mostrar o Brasil para os franceses, que envolveu uma representação teatral de inídgenas e atores em decorrência da celebração da Royal Entrée do rei Henrique II. Quanto a localização exata de onde ocorreu o evento, essa ruina da porta de entrada da cidade dá a pista - no livro de Denis consta que que foi próximo a porta da entrada da Muralha de Lemecier, tudo indica que o local do evento tenha sido L'île Lacroix - vide mapa abaixo mostrando a porta de entrada da cidade em ruinas, ponto de referência para a precisa localização.

Relatos sobre o modo de vida dos Tupis são raros e fragmentados, pois sua tradição oral foi quase completamente apagada ao longo dos séculos pela colonização e pela destruição de suas culturas. No entanto, registros deixados por viajantes e cronistas europeus, como Hans Staden, Jean de Léry, José de Anchieta e Ferdinand Denis, oferecem pistas valiosas, ainda que mediadas por perspectivas externas e frequentemente distorcidas pela incompreensão ou pelo exotismo.

Entrée du roi Henri II à Rouen le premier octobre 1550

Entre esses registros, destaca-se o relato de Ferdinand Denis, escrito em 1850 sobre la Sumpuouse Entrée  (suntuosa entrada), com base num livreto de Maurice Sève, publicada em Rouen em 1551. O texto registra a “entrada” realizada em homenagem ao rei de França Henrique II e à rainha Catarina de Médicis, em 1550. As entrées  eram celebrações, muitas vezes de caráter teatral ou religioso, em homenagem a acontecimentos ou personalidades de que se utilizava a realeza para exibir seu poderio e riqueza. 

Mapa da cidade de Rouen com a porta que aparece na gravura


Esse evento tinha a difícil missão de superar a entrada anterior, o casamento do rei Henrique II e à rainha Catarina de Médici, que havia ocorrido em Lyon em 1549. Foi uma celebração teatralizada que buscava mostra a sociedade européia como era o diferente estilo de vida do outro lado do Mar Tenebroso (Oceano Atlântico).


Nestes baixos-relevos esculpidos em pau-brasil encontrados hoje em um hotel particular na rue Malpalu 17 , psteriormente expostos no Museu de Antiguidades de Rouen, podemos ver as parte das 300 pessoas que participaram do evento, incluindo 50 indigenas brasileiros levados para a França exclusivamente para participação da entrada real.


É importante dizer neste momento que a cidade de Rouen, embora economicamente melhor que outras cidades da França, também apresentava um grande grau de pobreza e miséria, tendo sofrido com epidemias e infestações de ratos, as ruas tinham esgotos abertos e as pessoas eram sujas e pobres. Nesse contexto, os indígenas foram vistos com pessoas livres que tinham uma vida boa, limpos, fortes e saudáveis.

Trecho da Île Lacroix, Rouen, nos dias de hoje - aqui vemos o trecho onde o evento pode ter ocorrido, conofrme mostrado na gravura, com as torres e edifícios medievais, muitos dos quais ainda hoje presentes.

A antropofagia, chamada pejorativamente de canibalismo, talvez tenha sido outro fator importante que explica por que a maioria dos relatos sobre a vida Tupi não chegou até nós. Este hábito muito perturbador associado ao código de guerra Tupi foi visto com horror pelos franceses de ontem e de hoje. Aqueles que não se limitaram a essas questões morais, como o aventureiro Hans Staden e o calvinista Jean de Léry, encontraram uma defesa cultural para tal ato e o relataram detalhadamente em obras que refletem suas impressões pessoais e o choque com as práticas culturais indígenas.

Mesmo assim, esses textos reconhecem qualidades dos Tupis, como sua hospitalidade, senso de comunidade e respeito mútuo. É nesse contexto que se insere a observação de Montaigne em Os Canibais: ao narrar um suposto diálogo entre indígenas e o rei francês, ele destaca o espanto deles diante das desigualdades sociais europeias, algo inexistente entre os Tupis.

O episódio de Rouen é inspirado nas histórias contadas pelos matelots normands (marinhieors da normandia) vindos de Rouen, Honfleur, Dieppe, bem como de comerciantes que se arriscavam indo a terras distantes para explorar principalmente o Pau-Brasil, chamado na época de araboutan pelos franceses e ybirapitanga pelos Tupis. 

Mestres do teatro da época criaram as schiomachias e as naumachias, apresentações de origens gregas e latinas, historicamente usadas para descrever combates simbólicos ou reais em contextos espetaculares, especialmente na Roma Antiga.

Schiomachia, chamada pelos franceses de  scyumachia, vem do grego skiá (sombra) e máchē (luta), significando "luta de sombras". O termo refere-se a combates fictícios, simulados ou simbólicos, como encenações teatrais ou treinos de combate. Essas lutas podiam ser coreografadas para entreter o público sem causar ferimentos reais. Já naumachia, formada pelas palavras gregas naus (navio) e máchē (luta), significa "luta naval" e descreve recriações de batalhas marítimas realizadas em arenas ou grandes reservatórios de água - mais um indicativo de que o evento frances ocorreu na L'île Lacroix, pois tinha todos os meios naturais para facilitar a apresentação.

Entre esses viajantes que contribuíram para compor o roteiro de entrada suntuosa, estavam diversos tradutores de tupi antigo, jovens da região da Normandia que aprenderam o idioma com fluência. Eles não apenas apreciavam a convivência com os nativos, mas também adotaram muitos de seus costumes, como o hábito de furar a bochechas e os labios para usarem os piercings (chamados de botoques), pinturas corporais, e  e o uso de "canitares" (conhecidos por nós como "cocares" e chamados de "akangatara" pelos Tupi). Fumar tabaco e outras ervas pode ter sido o único desses costumes adquiridos dos tupis que sobreviveu ao tempo, sendo transmitido por gerações até os dias atuais.


Os intérpretes de Rouan, figuras importantes para os comerciantes que os ajudavam nas negociações de pau-brasil com os Tupis, adotaram os hábitos e maneirismos dos Tupis, vemos aqui um deles com canitar, arco e piercings nos lábios e bochechas.

Os indígenas foram levados para o exterior e eram vistos como exóticos e alienígenas, muitas vezes pareciam ser considerados troféus exóticos da “terra dos papagaios”. Um dos casos mais famosos foi o casamento de Catharina Paraguassu, em Saint-Malo, em 1528, com Diogo Álvares, o famoso Caramuru, naufragado português que viveu entre os índigenas na atual Salvador, na Bahia. história verdadeira que tem tons de mito.

Villegagnon provavelmente estava na plateia observando maravilhado as coisas deste novo mundo, uma bela cultura que se revelava a qual serviu de inspiração para criar a França Antártica. Poucos foram tão inspirados pela cultura ancestral brasileira quanto os franceses; seus interesses, segundo Lery, iam além do comércio brasileiro de pau-brasil e de outros interesses financeiros.

Nicolas Durand de Villegagnon, intrigado com relatos sobre o Novo Mundo, teria assistido a eventos na França que apresentavam encenações e recriações das culturas indígenas, incluindo rituais e costumes dos povos da América. Inspirado por essas demonstrações, ele concebeu a ideia de fundar uma colônia francesa nas terras brasileiras, que viria a se chamar França Antártica. Sua visão era criar um refúgio para huguenotes (protestantes calvinistas) e expandir a presença francesa na América, o que o levou, em 1555, à Baía de Guanabara, onde tentou implementar esse ambicioso projeto colonial.

Atores entravam em cena no papel de conquistadores portugueses, comerciantes de Rouen e até prostitutas, ao lado de marinheiros normandos vestidos de tupis e tabajaras, que se misturavam com nativos reais, ao lado de araras, papagaios e macacos selvagens, que percorriam as árvores europeias que foram transformadas em árvores brasileiras, com decorações e autênticas frutas penduradas nos galhos, numa celebração cheia de cor e tropicalidade.

Este evento ficou famoso e sobrevive até hoje graças ao texto Os Canibais de Montaigne, parte de seu livro Os Ensaios. A festa teve um aspecto inusitado e grandioso pelas proporções e pela riqueza de seus detalhes. Foi uma representação em grande escala de um cenário brasileiro, com fauna e flora originais, onde trezentos homens, incluindo cinquenta indígenas, simularam um confronto entre Tupinambás e Tabajaras.

Tupinambás e Tabajaras não apenas lutaram com vigor, mas também incendiaram tendas e tabas, recriando fielmente a destruição de uma aldeia em meio ao combate.

Na grandiosa encenação da "Entrada de Rouen", Tupinambás e Tabajaras representaram o conflito entre suas etnias com tamanha entrega e realismo que o espetáculo se tornou quase indistinguível de uma batalha verdadeira. Os indígenas, transportados do Brasil para a França, não apenas lutaram com vigor, mas também incendiaram tendas e tabas, recriando fielmente a destruição de uma aldeia em meio ao combate. A fumaça e o fogo subiram aos céus, envolvendo os espectadores em uma atmosfera tão vívida que parecia transcender o teatro, trazendo para Rouen a intensidade das disputas indígenas no Novo Mundo.

A pompa e a teatralidade da “Entrada de Rouen”, por exemplo, estavam longe de representar com fidelidade a vida indígena, mas ainda assim nos dão pistas sobre como os europeus viam – e reinterpretavam – as culturas ameríndias.

Ao final do evento os índios Tupis questionam o Rei Henrique II "como pode tantos homens fortes e armados obedecessem a uma criança (como você)”

Ao final do evento surge um caso interessante que demonstra muito bem as diferentes culturas entre os dois povos e nos faz questinoar.

Em meio aos aplausos o rei convocou três dos indígenas que participavam da pantomima para uma conversa. Ele falou longamente com eles sobre as excelências da cidade de Rouen e do próprio festival. Ele então perguntou o que eles mais gostaram. Eles primeiro responderam que achavam estranho que tantos homens fortes e armados obedecessem a “uma criança” e que não escolhessem um igual entre eles como comandante. Em segundo lugar, mostraram o seu espanto e indignação porque enquanto alguns estavam cheios de todo o conforto e tinham a mesa cheia, outros estavam nas ruas da cidade reduzidos à fome e à pobreza. Terminaram o diálogo com o rei com estas palavras: “e achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas” como relata Montagne na pagina 157 do livro Ensaios.

A história dos Tupis, como a de muitos povos originários, foi obscurecida pela destruição de sua tradição oral e pela colonização. No entanto, esses fragmentos literários permitem que, mesmo com todas as distorções, possamos buscar uma compreensão mais profunda de como esses povos viviam, suas práticas e crenças, e como resistiram às adversidades impostas por um mundo que os via como curiosidades exóticas ou meros objetos de exploração.

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Referências Bibliográficas

Registro de Lévi-Strauss sobre relato de índios guianenses, em seu livro O cru e o cozido. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 320.

DENIS, Ferdinand. Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 38. Ver também JONES, Colin. Paris, biografia de uma cidade. 5 ed. Porto Alegre: L&PM, 2013, p.129-130.

MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 146.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1976, 48.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 93, volume II.

LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2007, p. 121.

CHAUÍ, Marilena. Introdução a Rousseau. In: Coleção Os Pensadores – Rousseau, volume I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 13.

MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.157.

PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.


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